terça-feira, 16 de abril de 2013

A Educação de um Garoto

Extraído de BRAVO! Online

O sul-africano J. M. Coetzee lança A Infância de Jesus. O romance narra o crescimento de David em meio a dificuldades com o sistema de ensino. BRAVO! disponibiliza a seguir um capítulo do livro


Ao voltar para o quarto essa noite, ele encontra um recado debaixo da porta. É de Ana:O senhor e David gostariam de ir a um piquenique para recém-chegados? Me encontrem amanhã ao meio-dia no parque, perto da fonte. A.
Ao meio-dia, estão na fonte. Já está quente — até os pássaros parecem letárgicos. Longe do barulho do tráfego, se instalam debaixo de uma árvore frondosa. Ana chega pouco depois, com uma cesta. “Desculpe”, diz, “tive de resolver uma coisa.”
“Quantas pessoas vêm?”, ele pergunta.
“Não sei. Talvez meia dúzia. Vamos esperar para ver.”
Eles esperam. Não vem ninguém. “Parece que somos só nós”, Ana diz afinal. “Vamos começar?”
A cesta contém apenas um pacote de bolachas, um pote de pasta de feijão sem sal e uma garrafa de água.
Mas o menino devora sua parte sem reclamar.
Ana boceja, se estende na grama, fecha os olhos.
“O que você quis dizer outro dia quando usou as palavrastirar tudo da cabeça?”, ele pergunta. “Você disse que David e eu temos de tirar da cabeça as ligações antigas.”
Preguiçosa, Ana sacode a cabeça. “Outra hora”, diz. “Agora não.”
No tom dela, em seu olhar velado, ele sente um convite. A meia dúzia de participantes que não apareceu — seria uma invenção? Se o menino não estivesse ali ele deitaria ao lado dela no gramado e talvez deixasse sua mão pousar bem de leve na mão dela.
“Não”, ela murmura, como se lesse seus pensamentos. Um fantasma de ruga passa por sua testa. “Isso não.”
Isso não. Como entender essa moça, ora quente, ora fria? Será que tem alguma coisa na etiqueta dos sexos ou das gerações nesta terra nova que ele não está entendendo?
O menino o cutuca, aponta o pacote de bolachas quase vazio. Ele passa um pouco de pasta numa bolacha e dá a ele.
“Ele tem bastante apetite”, diz a moça, sem abrir os olhos.
“Está o tempo todo com fome.”
“Não se preocupe. Ele se adapta. Criança se adapta depressa.”
“Se adapta a passar fome? Por que ele haveria de se adaptar à fome se não existe nenhuma falta de comida?”
“Se adapta a uma dieta moderada, eu quis dizer. A fome é como um cachorro dentro do estômago: quanto mais comida se dá, mais ele exige.” Ela se senta de repente, se dirige ao menino. “Ouvi dizer que você está procurando sua mãe”, ela diz. “Está com saudade da mamãe?”
O menino faz que sim.
“E como é o nome da sua mãe?”
O menino olha interrogativamente para ele.
“Ele não sabe o nome dela”, ele diz. “Tinha uma carta quando tomou o navio, mas perdeu.”
“O barbante arrebentou”, o menino diz.
“A carta estava numa bolsinha”, ele explica, “pendurada no pescoço dele com um barbante. O barbante arrebentou e a carta se perdeu. Procuraram no navio inteiro. Foi assim que eu conheci
o David. Mas a carta, não encontraram.”
“Caiu no mar”, diz o menino. “Os peixes comeram.”
Ana franze a testa. “Se você não lembra o nome da sua mamãe, pode me contar como ela era? Consegue desenhar um retrato dela?”
O menino sacode a cabeça.
“Então, a mamãe se perdeu e você não sabe onde procurar.”
Ana faz uma pausa para refletir. “Então, que tal se o seupadriñocomeçar a procurar outra mamãe para você, para te
amar e cuidar de você?”
“O que que épadriño?”, o menino pergunta.
“Você fica me encaixando em papéis”, ele interrompe. “Não sou pai do David, nempadriño. Simplesmente estou ajudando o menino a encontrar a mãe.”
Ela ignora o protesto. “Se arrumar uma esposa”, diz ela, “pode servir de mãe para ele.”
Ele cai na gargalhada. “Que mulher vai querer casar com um homem como eu, um estranho que não tem nem uma muda de roupa?” Ele espera que a moça discorde, mas ela não fala nada. “Além disso, mesmo que eu arrumasse de fato uma esposa, quem garante que ela ia querer — sabe — um filho adotivo? Ou que o nosso amiguinho aqui ia aceitar outra mãe?”
“Nunca se sabe. Crianças se adaptam.”
“Como você sempre diz.” Ele sente a raiva crescer por dentro. O que essa moça tão assertiva sabe de crianças? E que direito tem de lhe passar sermão? Então, de repente, as peças do quebra-cabeças todas se encaixam. As roupas de mau gosto, a severidade desconcertante, a história de padrinho — “Você por acaso é freira, Ana?”, ele pergunta.
Ela sorri. “Por que está perguntando?”
“Você é uma daquelas freiras que largou o convento para viver no mundo? Para trabalhar com coisas que ninguém mais quer fazer: em prisões, orfanatos, asilos? Em centros de recepção de refugiados?”
“Que ridículo. Claro que não. O Centro não é uma prisão. Não é uma entidade filantrópica. Faz parte daAsistencia Social.
“Mesmo assim, como aguentar uma onda sem fim de gente como nós, desamparada, ignorante, carente, se não tiver fé em alguma coisa para ganhar forças?”
“Fé? Não tem nada a ver com fé. Fé quer dizer acreditar no que você faz mesmo que não dê frutos visíveis. O Centro não é assim. As pessoas chegam precisando de ajuda e nós ajudamos. Ajudamos e a vida delas melhora. Não tem nada de invisível. Nada que exija fé cega. Nós fazemos o nosso trabalho e tudo acaba dando certo. É só isso.”
“Nada de invisível?”
“Nada de invisível. Duas semanas atrás o senhor estava em Belstar. Na semana passada, encontrou trabalho nas docas. Hoje está fazendo piquenique no parque. O que tem de invisível nisso tudo? É progresso, progresso visível. E só para responder a sua pergunta, não, eu não sou freira.”
“Então por que prega esse ascetismo? Diz que temos de dominar a fome, de deixar o cachorro interno a pão e água. Por quê? Qual o problema com a fome? Para que servem os apetites da gente senão para mostrar o que precisamos? Se a gente não tivesse apetites, desejos, como ia viver?”
Parece-lhe uma boa questão, uma questão séria, que poderia perturbar até a freira mais estudada.
A resposta dela vem bem fácil, tão fácil e em voz tão baixa, como se fosse para o menino não ouvir, que por um momento ele se equivoca: “E no seu caso, para onde seus desejos levam o senhor?”.
“Meus desejos? Posso ser franco?”
“Pode.”
“Sem querer desrespeitar você nem sua hospitalidade, me levam a mais que bolacha e pasta de feijão. Me levam, por exemplo, a carne com purê de batata e molho. E tenho certeza que este rapazinho aqui” — ele estende a mão e pega o braço do menino — “sente a mesma coisa. Não sente?”
O menino balança vigorosamente a cabeça.
“Carne pingando molho”, ele continua. “Sabe o que mais me surpreende neste país?” Um tom ousado está se infiltrando em sua fala; seria mais sensato parar, mas ele não para. “Que seja tão manso. Todo mundo que eu encontro é tão bom, tão gentil, tão bem-intencionado. Ninguém xinga, ninguém fica bravo. Ninguém fica bêbado. Ninguém nem levanta a voz. Vivem num regime de pão, água e pasta de feijão e dizem que estão satisfeitos. Como pode ser, humanamente falando? Vocês estão mentindo, até para si mesmos?”
A moça abraça os joelhos, olha para ele sem dizer nada, esperando que ele termine a tirada.
“Nós estamos com fome, esse menino e eu.” Com força, ele puxa o menino para si. “Estamos com fome o tempo todo. Você me diz que nossa fome é uma coisa de outro mundo que trouxemos conosco, que não tem lugar para ela aqui, que temos que dominar a fome. Quando acabarmos com nossa fome, teremos provado que somos capazes de nos adaptar, e poderemos ser felizes para sempre. Mas eu não quero matar de fome o cachorro aqui dentro! Quero dar comida para ele! Você não acha?” Sacode o menino. O menino se enfia debaixo de sua axila, sorrindo, fazendo que sim com a cabeça. “Não acha, menino?”
Cai um silêncio.
“O senhor está mesmo com raiva”, diz Ana.
“Não estou com raiva. Estou com fome! Me diga: o que tem de errado em satisfazer um apetite comum? Por que nossos impulsos, fomes e desejos normais precisam ser eliminados?”
“Tem certeza que quer continuar falando disso na frente do menino?”
“Não tenho vergonha do que estou dizendo. Não é nada que se deva esconder de uma criança. Se uma criança pode dormir ao relento, em cima do chão duro, então também pode escutar uma discussão séria entre adultos.”
“Muito bem, então eu vou em frente com a discussão séria. O que o senhor quer de mim é uma coisa que eu não faço.”
Ele olha, perplexo. “O que eu quero de você?”
“É. O senhor quer que eu deixe o senhor me abraçar. Nós dois sabemos o que isso quer dizer:abraçar. E eu não permito isso.”
“Não falei nada de te abraçar. E o que tem de errado em abraçar, afinal, se você não é freira?”
“Recusar desejos não tem nada a ver com ser ou não ser freira. Eu simplesmente não faço isso. Não permito. Não gosto. Não tenho apetite para isso. Não tenho apetite para a coisa em si e não desejo ver o que isso faz com os seres humanos. O que faz com um homem.”
“O que quer dizer isso:o que faz com um homem?”
Ela olha intensamente para o menino. “Tem certeza que quer continuar?”
“Continue. Nunca é cedo para aprender sobre a vida.”
“Tudo bem. O senhor me acha atraente, eu sei disso. Talvez até me ache bonita. E porque me acha bonita, seu apetite, seu impulso, é me abraçar. Estou lendo direito os sinais? Os sinais que o senhor está me dando? Porque se não me achasse bonita, não teria esse impulso.”
Ele fica em silêncio.
“Quanto mais bonita acha que eu sou, mais urgente fica seu apetite. É assim que funcionam esses apetites que o senhor toma por estrelas guias e segue cegamente. Agora pense um pouco. Por favor, me diga, o que a beleza tem a ver com o abraço ao qual o senhor quer me submeter? Qual a relação entre uma coisa e outra? Explique.”
Ele fica quieto, mais que quieto. Fica pasmo.
“Vamos lá. O senhor falou que não se importava que o seu afilhado ouvisse. Falou que queria que ele aprendesse sobre a vida.”
“Entre um homem e uma mulher”, ele diz, afinal, “às vezes surge uma atração natural, imprevista, não premeditada.
Um acha o outro atraente, ou mesmo, para usar a outra palavra, bonito. A mulher mais bonita que o homem, geralmente. Porque uma coisa vem depois da outra, a atração e o desejo de abraçar vêm da beleza, é um mistério que eu não sei explicar a não ser para dizer que ser atraído por uma mulher é o único tributo que eu, que o meu ser físico, sabe prestar à beleza de uma mulher. Chamo de tributo porque sinto que é uma oferenda, não um insulto.”
Ele faz uma pausa. “Continue”, ela diz.
“É só isso que eu queria dizer.”
“É isso. E como um tributo a mim — uma oferenda, não um insulto —, o senhor quer me abraçar apertado e enfiar uma parte do seu corpo dentro de mim. Como um tributo, o senhor diz. Estou perplexa. A coisa toda me parece um absurdo — absurdo o senhor querer fazer isso, absurdo se eu permitir.”
“Só quando você fala desse jeito é que parece absurdo. Em si, não tem nada de absurdo. Não pode ser absurdo, uma vez que é um desejo natural do corpo natural. É a natureza falando em nós. É o jeito como as coisas são. O jeito como as coisas são não pode ser absurdo.”
“É mesmo? E se eu disser que me parece não só absurdo, mas feio também?”
Ele sacode a cabeça sem poder acreditar. “Não pode estar falando sério. Eu posso parecer velho e feio — eu e meus desejos. Mas com certeza você não pode acreditar que a natureza em si seja feia.”
“Posso, sim. A natureza pode fazer parte da beleza, mas a natureza pode fazer parte da feiura também. As partes do corpo que o senhor discretamente não menciona, não na frente do seu afilhado: acha que são bonitas?”
“Em si mesmas? Não, em si elas não são bonitas. O todo é que é bonito, não as partes.”
“E essas partes que não são bonitas — o senhor quer pôr dentro de mim! O que eu devo pensar?”
“Não sei. Me diga o que pensa.”
“Que toda essa conversa bonita de prestar tributo à beleza éuna tontería. Se o senhor achasse que eu sou uma encarnação do bem, não ia querer praticar essas coisas comigo. E então por que quer fazer isso se eu sou uma encarnação da beleza? A beleza é inferior ao bem? Explique.”
Una tontería: o que é?”
“Bobagem. Absurdo.”
Ele se põe de pé. “Eu não vou mais ficar me desculpando, Ana. Acho que essa discussão não vai levar a nada. Acho que não sabe do que está falando.”
“É mesmo? Acha que eu sou uma criança ignorante?”
“Pode não ser uma criança, mas acho, sim, que é ignorante das coisas da vida. Venha”, ele diz ao menino, e pega sua mão. “Já fizemos nosso piquenique, agora está na hora de agradecer à moça e procurar alguma coisa para a gente comer.”
Ana se reclina na grama, estica as pernas, cruza as mãos no colo, sorri para ele, zombeteira. “Cutucou a ferida, foi?”,ela pergunta.
Debaixo do sol escaldante, ele atravessa o parque vazio, o menino trotando para acompanhar seu ritmo.
“O que épadriño?”, o menino pergunta.
Padriñoé uma pessoa que fica no lugar do seu pai quando, por alguma razão, seu pai não está.”
“Você é meupadriño?”
“Não, não sou. Ninguém me convidou para ser seu padrinho. Sou só seu amigo.”
“Eu posso convidar você para ser meupadriño.”
“Isso não é você que faz, meu menino. Não pode escolher um padrinho para você mesmo, do mesmo jeito que não pode escolher seu pai. Não tem uma palavra certa para o que eu sou para você, assim como não tem uma palavra certa para o que você é para mim. Mas se você quiser, pode me chamar de Tio. Quando perguntarem:Quem ele é para você?, você pode responder:Ele é meu tio. Ele é meu tio e gosta de mim. E eu vou dizer:Ele é o meu menino.
“Mas aquela moça vai ser minha mãe?”
“Ana? Não. Ela não está interessada em ser mãe.”
“Você vai casar com ela?”
“Claro que não. Não estou aqui procurando esposa, estou aqui para ajudar você a encontrar sua mãe, sua mãe de verdade.”
Ele está tentando manter a voz controlada, o tom leve; mas a verdade é que o ataque da moça o abalou.
“Você ficou bravo com ela”, diz o menino. “Por que ficou bravo?”
Ele para de andar, ergue o menino e lhe dá um beijo na testa. “Desculpe eu ter ficado bravo. Não estava bravo com você.”
“Mas ficou bravo com a moça e ela ficou brava com você.”
“Fiquei bravo com ela porque ela nos trata mal e eu não entendo por quê. Nós discutimos, ela e eu, discutimos a sério. Mas agora já passou. Não foi importante.”
“Ela disse que você queria enfiar uma coisa dentro dela.”
Ele se cala.
“O que que é isso? Você quer mesmo enfiar uma coisa dentro dela?”
“Era só um modo de dizer. Ela estava querendo dizer que eu estava tentando impor as minhas ideias para ela. E tinha razão. A gente não deve impor ideias para os outros.”
“Eu imponho ideias para você?”
“Não, claro que não. Vamos procurar alguma coisa para comer.”
Eles vasculham as ruas a leste do parque, em busca de algum tipo de restaurante. É um bairro de casas modestas, com
um prédio de apartamentos de vez em quando. Encontram apenas uma loja. naranjas, diz a placa, em letras grandes. As portas metálicas estão fechadas de forma que ele não consegue ver se vendem laranjas de fato ou seNaranjasé apenas um nome.
Ele se dirige a um homem que passa com um cachorro na guia. “Com licença”, diz, “meu menino e eu estamos procurando um café ou um restaurante para comer, ou, se não isso, uma loja de mantimentos.”
“Domingo de tarde?”, o homem pergunta. O cachorro fareja os sapatos do menino, depois seus fundilhos. “Não sei o que sugerir, a menos que esteja disposto a ir até a cidade.”
“Tem algum ônibus?”
“O número 42, mas não funciona domingo.”
“Então, não podemos de fato ir até a cidade. E não tem nada por perto onde a gente possa comer. E todas as lojas estãofechadas. O que o senhor sugere que a gente faça?”
Os traços do homem endurecem. Ele puxa a guia do cachorro. “Vamos, Bruno”, diz.
Mal-humorado, ele volta ao Centro. Avançam devagar, uma vez que o menino fica hesitando e pulando para evitar asrachaduras do calçamento.
“Vamos mais depressa”, ele diz, irritado. “Deixe para brincar outro dia.”
“Não. Não quero cair dentro de uma rachadura.”
“Que bobagem. Como um menino grande como você pode cair dentro de uma rachadura pequena dessas?”
“Não essa rachadura. Outra rachadura.”
“Qual rachadura? Mostre qual.”
“Não sei! Não sei qual rachadura. Ninguém sabe.”
“Ninguém sabe porque ninguém pode cair dentro de uma rachadura do calçamento. Agora vamos depressa.”
“Eu posso! Você pode! Qualquer um pode! Você que não sabe!”

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