segunda-feira, 15 de junho de 2015

[Postagem do Dia] A (re)produção da lógica binária heteronormativa e a performatividade de Judith Butler

Os sujeitos, independentemente do seu sexo biológico, gênero, identidade ou orientação sexual, almejam se adequar no meio em que estão inseridos, para assim poderem viver e praticar todos os atos que lhe são permitidos em sociedade. Para tanto, há uma gama de padrões culturais impostos e já explanados anteriormente. Os sujeitos da diversidade sexual rompem com a lógica binária heteronormativa, pois eles/as estão distantes do que é normalizado e normatizado. Deste modo, a lógica de sexo, gênero, identidade e orientação sexual realmente ganha novos contornos, pois a continuidade e coerência expostas anteriormente são desconstruídas por esses sujeitos, em prol da fidelidade do que há de mais íntimo dentro de si, sendo esta a real expressão do seu ser. Então, esse padrão binário é rompido, seja pelo sexo biológico, quando se tem a presença do/a intersexual ou do/a transexual que chega à cirurgia de mudança de sexo objetivando atingir uma coerência entre sexo-corpo-gênero; seja pelo/a homossexual, que não apresenta os aspectos básicos da orientação sexual da matriz da heterossexualidade; ou pelo/a transgênero que não apresenta conformidade com as limitações de gênero impostas culturalmente, mas rompe com essa limitação.

Apesar de a lógica binária heteronormativa ser rompida em um primeiro momento, há de se ressaltar que essa mesma lógica será (re)produzida por esses sujeitos, não da forma habitual e naturalizada, mas sim no momento em que esses sujeitos da diversidade sexual incorporam – em sua expressão – características inerentes ao que já está imposto, normatizado. Por exemplo, o/a homossexual, dentro da sua relação amorosa, adota papéis preexistentes. Seja o papel do gênero masculino, seja o do gênero feminino – pois estes são seus únicos referenciais -, não existe um referencial homossexual, assim como não existe uma estrutura diversificada. O que é ensinado desde o nascimento é a reprodução de um padrão já consagrado, tanto no seu comportamento em sociedade, como no espaço privado, na relação amorosa. Isto é, em um relacionamento amoroso, a definição dos sujeitos amorosos e dos seus lugares, enquanto parceiros/as, são evidenciados a partir do seu gênero. Concomitantemente a isso, existe a necessidade de procriação, que firma o pacto sagrado entre homem e mulher em uma relação. Assim sendo, os modos de ordenar relacionamentos afetivos pautam-se nessa lógica binária heteronormativa do que é ser homem e ser mulher, da qual tratamos anteriormente. Assim, é o que a sociedade exige: uma condição binária, hierárquica e reprodutora.

Essa lógica vai muito além dos relacionamentos amorosos. Como forma de ilustrar mais um exemplo, têm-se os/as transexuais, que são a maior expressão de rompimento com o discurso totalizante de que o sexo biológico é inviolável. Contudo, no momento em que se busca adequação da sua condição psíquica ao corpo, busca-se também uma integração normalizada na sociedade, sendo o homem e a mulher os únicos modelos de sexo biológico que encontramos. Deste modo, busca-se de todas as formas desfazer-se do seu sexo de nascimento, em outra forma preexistente de adequação do corpo. Reproduz-se, novamente, a lógica binária heteronormativa.

Nos estudos contemporâneos acerca dos sujeitos sociais, pode-se observar uma gama de pessoas enquadradas em algum conceito, são eles/as: homem, mulher, intersexual, heterossexual homem, heterossexual mulher, homossexual homem, homossexual mulher, bissexual homem, bissexual mulher, transexual homem, transexual mulher, transgênero homem, transgênero mulher, travesti homem e travesti mulher, não citando outros/as que começam a ser estudados/as para enquadrar. Foram nomeados agora 15 (quinze) sujeitos classificados em estereótipos muito bem delimitados. Conceituação que cria padrões e que exclui quem não se encaixa. Os sujeitos perdem as suas particularidades como pessoas para fazerem parte de um grupo social.

Diante do contexto atual, a nomeação de sujeitos e representações, que visa mostrar a existência de identidades múltiplas é de fundamental importância para a visibilidade dos sujeitos abjetos, ou seja, daqueles/as que não se enquadram no padrão culturalmente imposto, as lutas dos movimentos sociais (pró-feminista, pró-gay, pró-lésbica, etc.) se firmam em cima dessa perspectiva como forma de mostrar que essas “dissidências” sociais existem e têm direitos a uma vida plena e de igualdade em relação àqueles/as que se encaixam ao dualismo binário: homem, masculino, heterossexual – mulher, feminina, heterossexual.

Porém, no momento em que se cria uma sigla LGBTI, cria-se uma representação, um sujeito que tem que se adaptar não mais às normas binárias, mas sim àquelas impostas aos sujeitos desse grupo, ou seja, normatiza-os, e isto, é o que se deve evitar, pois no momento em que se normatiza esse grupo, uma gama de sujeitos será excluída por não se adequarem a esse conceito abjeto. Por exemplo, antes o/a “bissexual” não estava presente na sigla da diversidade sexual (GLS), logo, eram excluídos desse contexto de luta e de direitos, como também os/as transexuais, travestis, transgênero, quando a letra T* estava em processo de desenvolvimento, e, mais recentemente, os/as intersexuais que acaba de entrar nesse rol, apesar da sua existência ser análoga com a própria existência do ser humano, porém, reiteradamente, ignorado e esquecido. Ou seja, apesar do objetivo ser a visibilidade, a sigla da diversidade sexual nomeia e cria normas de comportamento, expressão, vestuário e não se ajustar a essas normas gera um ponto de exclusão, pois da mesma forma que existe uma matriz heterossexual, sendo este motivador de normatização, visivelmente excludente, a ponto de criar essas novas identidades marginalizadas (identidades pertencentes à diversidade sexual), a matriz da diversidade sexual (compreendendo hoje os/as LGBTI) também cria uma normatização de comportamento, o que motiva o surgimento de novas identidades. Uma vez que, nem sempre o sujeito vai se sentir abarcado por esta sigla, por isso a sua mutação constante, mas antes de mudar ela exclui, deixa de proporcionar as suas conquistas a sujeitos que se vêem, conceitualmente, abandonados por esse universo ou até mesmo a exclusão por parte dos próprios membros da diversidade.

É importante observar, portanto, que a sigla, a expressão, as identidades são os objetos de luta, porém, nem sempre se apresentam como forma de inclusão. O objeto de luta, na verdade, deveria ser a pessoa, lutar pelos direitos da/o cidadã/o, independente de qual cidadã/o se fala. Pois, apesar de todos esses sujeitos estarem aglomerados em apenas uma sigla, eles/as estão separados/as, as suas lutas não são conjuntas, unitárias, os direitos adquiridos não são explorados por todos/as.

Nesse contexto, busca-se em Butler (2003) um raciocínio coerente como forma de solucionar essa classificação excludente, para tanto, adota-se a teoria do gênero performado e do gênero performático. Neste primeiro, pode-se visualizar bem o que foi trabalhado até este momento, o gênero como uma expressão externa, para o mundo, agir de acordo com determinada maneira, delimitado por papéis predefinidos, e esse agir é o que irá designar qual o seu gênero (adequando-se ao feminino ou ao masculino). Para o gênero feminino, o seu papel perante a sociedade, bem como no próprio relacionamento amoroso, será pautado num comportamento mais vulnerável, passivo, se apresenta com roupas específicas, profissões mais adequadas, expressando mais amplamente os seus sentimentos, etc. Ressaltando que essas regras são ditadas desde o nascimento quando os pais definem que se a filha for mulher o quarto será rosa e para o homem azul; quando adentra a fase criança a menina deve brincar de boneca, adestrando-a para a futura procriação, as tarefas do lar, ao homem o jogo de futebol para atestar a sua masculinidade; na adolescência e fase adulta os poderes midiáticos estabelecem os padrões de como a mulher deve se vestir para exaltar a sua feminidade para o homem, sendo afronta à “moral e aos bons costumes” frequentar determinados lugares sem a presença masculina (exemplo: bares), bem como algumas condutas (exemplo: fumar, beber em excesso, sexo antes do casamento). Inclusive até a famosa festa de “debutantes” que a família realiza, historicamente tem como objetivo apresentar a filha mulher (ao completar quinze anos) à sociedade, como disponível para o compromisso, o casamento, mostrando a transição da fase criança para a adulta, já preparada e prendada para o matrimônio. Ao homem, a sua masculinidade é questionada a todo o momento, sendo-lhe imposto a regular provação de ser “macho”, viril, de ter o poder de dominação, de ser o pólo ativo nos relacionamentos amorosos e conduzir as etapas da vida conjugal.

Já em outra perspectiva, o gênero performático se contrapõe, pois se por um lado a forma como se age consolida o ser “mulher” ou o ser “homem”, sendo esta uma realidade interna, sendo isto o que há de mais verdadeiro sobre a pessoa, por outro lado pode-se dizer que toda essa perspectiva de gênero nada mais é do que uma construção cultural, fenômeno este produzido e reproduzido até os dias atuais. Assim sendo, o gênero performático, em outras palavras, afirma que não existe gênero, os sujeitos são sujeitos, sem pertencer a definições, pois estas são apenas criações repassadas e consolidadas ao longo do tempo. Essa perspectiva começa a ser construída quando desassocia sexo, gênero e sexualidade, como um todo unitário, correlacionado. Para Salih (2012), o gênero, deste modo, ganharia independência em relação ao sexo, pois o sexo não seria fator delimitador da forma de viver e de se comportar.

Pensar que o gênero é performático e não performado é de fundamental importância para se questionar porque existem papéis de gênero tão veementes definidos e defendidos. Olhar para um sujeito sem enxergar nele um “homem” ou uma “mulher” é enxergá-lo sem a obrigatoriedade de comportamentos. Não haveria necessidade de diferenças de tratamento, disparidades salariais, imposições morais concernentes ao seu gênero, pois o único ponto que iria diferenciá-los seria a sua configuração biológica e isto não seria determinante para guiar o restante da sua vida em sociedade. Contudo, o grande problema em enxergar o gênero performático como algo possível nos dias atuais é que a própria sociedade tem uma identidade, esta foi construída baseada em discursos patriarcais-machistas e fundamentada a partir da religião e, posteriormente, com amparo das ciências. Deste modo, da mesma forma que é difícil desconstruir uma identidade pessoal, muito mais complexo é fazer isso com a identidade de uma sociedade, que se constitui a partir do que considera ser inquestionável.

Trazendo essa teoria para os sujeitos da diversidade sexual, tê-los como indivíduos sem aspectos limitadores concernentes ao sexo biológico, gênero, identidade de gênero e orientação sexual seria o mesmo que colocá-los em par de igualdades com qualquer outro sujeito que acompanha o padrão da lógica binária heteronormativa. Deste modo, os conceitos, nomes, nomenclaturas perderiam o sentido e abriria espaço para uma sociedade que governa para pessoas e não para homens ou mulheres, para gays ou lésbicas. Assim sendo, o/a intersexual, por exemplo, teria direito de ter uma vida normal e no momento apropriado poderia escolher ter um órgão sexual específico ou permanecer com os dois; o homem que sofreu violência doméstica da sua parceira ou do seu parceiro também teria a devida proteção da Lei Maria da Penha (Lei de proteção às vítimas de violência doméstica), pois, deste modo, esta legislação não mais teria como base o gênero como limitador da sua aplicação, pois o próprio conceito de gênero perderia o sentido. E os sujeitos seriam apenas sujeitos.

Contudo, ao lado desses discursos predominantes na sociedade para que se perpetue a constituição de uma identidade, existem os poderes institucionais que dia após dia atestam a suposta coerência que permeia a constituição atual da realidade social. Seja através dos meios midiáticos que impõem padrões de comportamento e o sujeito que não se encaixa é passível de sofrer uma verdadeira exclusão social; bem como o poder da igreja, que prega e induz por meio da fé o sujeito a comportamentos machistas com fundamentos deturpados; a heteronormatividade, que cria um conjunto de normas a ser respeitadas, buscando a perpetuação da família nuclear, qual seja a branca, cristã, de classe média e heterossexual, tendo todos os mecanismos basilares da sociedade a seu favor, como é o caso do Direito e da Religião. E ao passo disso, na interação social, os regramentos impostos pelos poderes institucionais, são externados em forma de preconceito, bullying, violência física e psicológica. Todos esses mecanismos que constituem o meio pelo qual o sujeito se insere, apresentam-se com práticas e discursos que mantém as disposições de gênero a serem preenchidas de acordo com cada configuração biológica.

As discussões acerca da desconstrução do sujeito apresentam-se em patamares totalmente diferentes quando comparado o campo teórico e o prático. Se na teoria a visualização dessa desconstrução abre espaço para uma realidade mais ideal e igualitária, na prática há um distanciamento. O gênero performático de Butler apesar de ser de difícil visualização prática, é também um viés importante para a busca da real efetivação dos direitos sociais de forma isonômica.

*O artigo do dia foi retirado de um capítulo do meu trabalho monográfico (Aplicação da Lei Maria da Penha para os Sujeitos LGBTI: performatividade e entidade familiar).

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