segunda-feira, 15 de junho de 2015

É o órgão sexual que define a identidade de gênero? O caso de David Reimer

Tenho visto e criticado constantemente uma vertente feminista que não tem vergonha de se assumir transfóbica. Elas são chamadas de TERFs (feministas radicais que excluem trans, na sigla em inglês). Não vou nem falar aqui do absurdo que me parece a ideia de combater um preconceito com outro. Mulheres sendo intolerantes com outras vítimas de intolerância! Dói na alma.
É incompreensível a convivência da frase de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher”, tão repetida pelas feministas, com a transfobia, que prega que só é mulher quem nasce “com vagina de fábrica”. Ora, ou a pessoa “torna-se mulher” ou só é mulher quem nasce com xoxota. São conceitos incompatíveis.
Mas o que eu quero abordar aqui é o aspecto mais científico da coisa: quem nos garante que a presença ou não do órgão sexual seja capaz de definir a identidade de gênero de alguém? Ter vagina faz de alguém “mulher”? Ter pênis faz de alguém “homem”? Ou é algo que vai muito além da vagina, do pênis e até mesmo da criação que a pessoa recebe? E se estiver nos genes? Como é que alguém pode pretender, do lado de fora, definir o que OUTRO ser humano é e como se sente por dentro? Me parece uma postura conservadora, autoritária e indigna de um movimento que se pretende libertário como o feminismo.
É como se fizessem da vagina (“de fábrica”, claro) o maior símbolo da mulher, ao mesmo tempo que criticam a “falocracia” masculina. Trocaram a inveja do pênis pelo endeusamento da xoxota! E eu duvido que ter um pinto entre as pernas impeça alguém de se sentir mulher –taí a transexual Caitlyn Jenner que não me deixa mentir. Mesmo quando se chamava Bruce e era campeão olímpico, musculoso e masculino, ela afirma que se sentia mulher por dentro. Enfim, não consigo concordar que esteja na xoxota o “santo Graal” do sexo feminino. E se estiver na alma a resposta? Felizmente, tenho certeza que todas estas concepções são arcaicas e que uma hora vamos olhar para trás e ver o quão antiquados fomos.
Gostaria de contar para vocês, como exemplo deste mistério que é a sexualidade humana, uma história bem triste, terrível: a história do canadense David Reimer. David, que se chamava originalmente Bruce, nasceu saudável junto com seu irmão gêmeo Brian em 1965. Aos sete meses, porém, os bebês apresentaram dificuldade para urinar e os pais foram aconselhados a fazer uma operação de fimose. Uma barbeiragem durante o procedimento fez com que o pênis do pequeno Bruce fosse completamente queimado.
Mas o mais absurdo viria depois: um psicólogo procurado pela família, o neozelandês John Money, aconselhou os pais a criar Bruce como se fosse uma menina! E até os 13 anos de idade ele usou o nome de Brenda, vestiu roupas femininas e foi forçado a acreditar que era uma garota. Imaginem que violência. Só que Brenda, mesmo sem pênis (foi feita a castração definitiva aos dois anos de idade) e sendo induzida a pensar que era uma menina, jamais se sentiu assim em seu íntimo.
O psicólogo, aparentemente obcecado em provar que suas teorias eram verdadeiras, forçava Brenda, ainda criança, a interpretar jogos sexuais infantis com o irmão, simulando que era a mulher da história, deitada de barriga para cima e com as pernas abertas, ou de quatro, com Brian se colocando por trás. Ela também passou a tomar hormônios femininos. Mas nada foi capaz de fazê-la sentir diferente do que se sentia por dentro: um menino.
“Eu podia ver que Brenda não era feliz como menina. Ela era muito rebelde, muito masculina e eu não conseguia convencê-la a fazer nada feminino. Brenda quase não tinha amigos enquanto crescia. Todos a ridicularizavam, a chamavam de mulher das cavernas. Ela era uma garota muito solitária”, disse a mãe. Quando o dr. Money (que nome!) sugeriu que fosse feita uma cirurgia de mudança de sexo, o casal decidiu parar com as consultas e contou a Brenda, já com impulsos suicidas aos 13 anos, que na verdade tinha nascido menino.
Foi aí que Brenda se transformou de volta em Bruce, ou melhor, em David, o nome que escolheu. Fez várias cirurgias para reconstrução do pênis, e chegou a se casar com uma mulher, mas, deprimido com a morte do irmão gêmeo por overdose, acabou se suicidando aos 38 anos de idade.
Por que estou contando essa história? Porque o caso de Bruce Reimer se tornou célebre por demonstrar que não está necessariamente no aspecto físico ou na criação a identidade de gênero de ninguém. Parecer não é ser. É algo mais profundo e interior. Violências semelhantes foram feitas com crianças hermafroditas cujos pais foram orientados a escolher no nascimento a qual gênero que o/a filho/a deveria pertencer, extirpando o órgão “sobressalente” sem esperar sequer que a criança crescesse para decidir.
Não é a aparência, não é a forma como se veste, não é o pênis nem é a xoxota: é dentro. Parem de ditar o que faz OUTRA pessoa ser o que ela mesma sente que é. Um mundo ideal para mim seria um em que todo mundo pudesse ser o que deseja ser, e ser feliz assim. E um mundo em que essa decisão não se tornasse alvo do julgamento de ninguém: de políticos, de religiosos, de machistas, de homofóbicos, de heterossexuais, de homossexuais. Muito menos de feministas.

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