quarta-feira, 14 de setembro de 2016

No cárcere

Projeto “SemPeia”, idealizado pelo coletivo “As 3 Marias”, quer levar oficinas teatrais para unidade prisional em SP com a intenção de trabalhar memória, identidade e senso coletivo.

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por Paulo Henrique Pompermaier

Em 2014, a população carcerária feminina no Brasil chegava a 37.380. O número colocava o país como o quinto que mais encarcerava mulheres no mundo, segundo uma pesquisa do ICPR (Institute for Criminal Policy Research). As perspectivas não são positivas: desde 2000, ao longo de 14 anos, o número de mulheres presas aumentou 567% no Brasil, mais que o dobro do percentual masculino, que chega a 220%., segundo a mesma pesquisa.

O teatro, como apontado pelo dramaturgo e ensaísta Augusto Boal desde a década de 1960, é uma forma de dialogar e dar voz às experiências do oprimido. Nesta trilha, o coletivo “As 3 Marias”, formado pelas atrizes e educadoras Alice Stamato e Luana Mincoff e a advogada e atriz Carol Narchi, lança o projeto “SemPeia”, que pretende levar o teatro para dentro do Sistema de Progressão Carcerário Feminino Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira, no Butantã, em São Paulo.

“O teatro é uma forma poderosa de, dentro de um sistema penitenciário precário, trabalhar a memória, a identidade, o senso coletivo, a confiança, a troca”, diz Luana Mincoff, que o vê como uma ferramenta importante para socialização na medida em que “deixa a pessoa vulnerável, cru, sem máscaras, em contato com coisas que são difíceis e dolorosas”.

Ainda em fase de arrecadação de fundos, o projeto terá quatro etapas: oficinas de quatro horas semanais ministradas dentro do presídio, nas quais a linguagem teatral será introduzida; início da construção da dramaturgia, de livre temática, assentada nas experiências e memórias das reclusas; começo dos ensaios e construção cênica, com a produção das detentas em qualquer área que queiram (figurino, cenografia, iluminação, por exemplo); e finalmente o espetáculo, que será encenado dentro do presídio.

A idéia é que “SemPeia” tenha duração mínima de cinco meses, podendo ser expandido para nove, dependendo dos recursos financeiros. O sistema carcerário escolhido para iniciar o projeto tem regime semi-aberto, o que possibilita a encenação das reclusas fora da penitenciária.

Criação teatral

Uma das inspirações para a realização do projeto é o trabalho realizado pelo coletivo português A PELE, que pesquisa as formas artísticas no cárcere há cerca de nove anos. Hugo Cruz, co-fundador do grupo, acredita que o presídio “é um lugar com muitas feridas abertas, muito contraditório, mas é espaço privilegiado para se criar e pensar em outras alternativas na vida”.

“As pessoas presas normalmente passaram por situações difíceis e têm todos os motivos para desconfiar do outro. O processo de criação teatral nesses espaços é uma forma de experimentarmos outros padrões de relação com o outro, em que as pessoas percebem que podem ouvir, falar e serem ouvidas”, afirma Cruz, que ministra cursos em diversos países mostrando dinâmicas e metodologias relacionadas ao teatro em comunidade.

Em função da dificuldade de financiamento através de editais governamentais, como relata Luana, a forma adotada pelo grupo para conseguir o dinheiro necessário foi o crowdfunding, aberto desde 14 de julho, que segue recebendo doações até esta quarta (14), à meia noite. Mesmo em Portugal, que cada vez mais reconhece a pesquisa artística em presídios, não há apoio governamental, cabendo a fundações e a projetos da União Europeia o financiamento do PELE.

A intenção é que, ao fim das oficinas, as reclusas passem a desenvolver atividades teatrais autônomas. “A gente precisa acender uma chaminha e ir embora. Temos que mostrar que somos meras mediadoras daquela situação e que eles podem se promover e dar oficinas”, diz Alice. Nas palavras de Luana Mincoff, seria uma forma de “não dar a voz, pois elas têm vozes, mas propor um protagonismo, um espaço para que essas vozes sejam ouvidas”.

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